sexta-feira, maio 20

Hora de voltar.

   Há tempos em que nossos mais deslumbrantes costumes são esquecidos. A dona de casa apaixonada pela cozinha decide deixar todos os moradores famintos. O menino adolescente não toca mais no boné, separa então meia hora de seu dia para se sentir um Elvis Presley, ele quer uma onda de gel perfeita em seu cabelo. O funcionário público que, ao chegar do trabalho sempre ligava o rádio na emissora de sua preferência, se esquece por um momento do prazer de ouvir música.
  Esquecer-se? Bom, na verdade eles não esquecem. Nós não esquecemos. Perdoem-me, mas apenas ignoramos.

  Ignoramos porque nos sentimos compromissados para com tudo a que nos apegamos. É como aquele casaco que, mesmo que você não use, prefere deixar quieto no guarda-roupa. Você toma essa atitude há anos, mas no último inverno, com sarcástica indiferença de sua parte, o belo agasalho foi parar no saco de roupas separadas para doação. Ele é jogado com rapidez na sacola para que não exista tempo de arrependimento, você prefere fazer de conta que tudo está correndo como devido. No outro dia, seu primeiro compromisso é correr ao abrigo para finalmente se desfazer daquela peça. Pronto, já pode voltar à rotina e sentir-se sossegado.
    Os dias passam, a tranquilidade torna-se sua melhor companheira. Andam os meses, seus planos têm surtido efeito, sua vida prospera, as conquistas ocorrem de forma natural.
    Por ordem de um ser superior, certo dia a dona de casa foi visitar uma amiga com quem não se encontrava há 5meses. Sim, aquela mesma dona de casa que foi citada no início desse emaranhado de palavras, ela mesma. Ela estava acompanhada do esposo, que levou uma lembrança de sua última viagem ao casal de amigos. Todos reunidos, noite de sexta-feira, alguns goles de whisky descem pelas gargantas, os casais trocam piadas entre si. O papo já estava quase em dia, quando chega o momento da janta. Os talheres e copos são colocados à mesa. Chega também uma tijela de salada e outra de lasanha, uma lasanha de quatro queijos com molho de champignon . A nossa conhecida dona de casa depara-se com a cena. Ela observa a tijela de lasanha, permanece imóvel por alguns segundos. Olhos nos quadros, olhos na tijela; olhos o teto, olhos na tijela. Lasanha de quatro queijos com champignom era sua especialidade enquanto ainda cozinhava. Ela ingressa em um conflito, apenas seu esposo repara naquele transtorno. Os dois preferem ignorar a situação. É feita a janta, novas histórias são contadas, enquanto risadas dão tempero à madrugada.
   Ocorre a despedida, o casal chega em casa. Ao invés de conversarem sobre a noite como de costume, os dois permanecem quietos. Deitam-se na cama, o tempo corre.
   -Aquela lasa...nha. Tenta dizer o marido, que é iterrompido pela mulher.
   Eles dormem.
   Meio-dia, hora do almoço.
   Há um pote de cogumelos frescos sobre a mesa da cozinha.
   O forno é aberto. Cheiro de queijo no ar.

2 comentários:

Jéssica Bomzanini disse...

Ai Laurinha,
Adorei o teu texto...
Achei a história do casal bem interessante. É bom para sempre lembrarmos das pequenas coisas que nos fazem felizes no dia-a-dia...

Anônimo disse...

Tava um texto tri bem escrito, que curiosamente gera sentimento de culpa pelos objetos que já foram tão queridos mas deixaram de ser, e eis que no meio do texto surge a palavra "tijela". Ela grita, brilha como um holofote, cega os olhos do leitor e impede que o texto continue sendo lido... (tijela pode ser um bairro de um município de SC, mas o utensílio se chama "tigela")

Mas, esforço desprendido depois, legal a idéia de como enxergar coisas que já foram preciosas para nós sendo feitas por terceiros pode nos fazer querer voltar a ser quem éramos. Muitas histórias abertas, mas o texto fecha de uma maneira que conclui a idéia principal ^^

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Um conjunto de antíteses e uma mente apaixonada, que pulsam juntos em forma de sonhos. Graduanda em Psicologia e ex-estudante de Jornalismo na UFRGS.

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